quinta-feira, fevereiro 24, 2005

O retorno da pesquisa (honesta) com psicoativos

A revista 'New Scientist' (UK) deste mês apresenta extensa matéria sobre o retorno da pesquisa sobre as possíveis utilizações terapêuticas de substâncias psicoativas, e fecha a matéria com a seguinte afirmação:
"Talvez, apenas talvez, depois de mais de 30 anos de exílio, esta classe de drogas -- poderosa, pouco compreendida, mas com grande potencial de curar a mente humana -- esteja pronta para ser reabilitada pela comunidade médica".
Psychedelic medicine: Mind bending, health giving - New Scientist - 26 February 2005

O artigo destaca a pesquisa pioneira de John Halpern com os integrantes da Igreja Nativa Americana no fim dos anos 90 como o primeiro estudo a refutar o famoso (e fatídico) editorial de 1971 no The Journal of the American Medical Association, que declarava bombasticamente que o uso repetido de psicodélicos causaria deterioração da personalidade. Desde então, instalou-se o período de censura e repressão oficial sobre toda e qualquer pesquisa no tema.

Com seu estudo, Halpern teve êxito em demonstrar que os membros da NAC (Native American Church) não apresentavam nenhuma deficiência após anos de uso do peiote (mescalina), e tais resultados encontram eco em outro importante estudo iniciado em 1995 por Charles Grob. O "Hoasca Project" contou com a participação de membros da "União do Vegetal" com longo tempo de utilização da bebida sacramental ayahuasca (DMT), os quais registraram indicadores de saúde física e psicológica significativamente superiores ao grupo controle.

Tais resultados criaram as condições para que grupos como o MAPS e o Heffter Institute obtivessem êxito na pressão sobre o FDA no sentido de liberar a pesquisa oficial. O resultado reflete-se na lista das pesquisas autorizadas, que não para de crescer: (1) psilocibina no tratamento de disturbio obsessivo compulsivo - Francisco Moreno - MD; (2) MDMA em pacientes terminais de cancer, John H. Halpern, MD; (3) LSD no tratamento da enxaqueca crônica - Halpern and Andrew Sewel, MD (4) psilocibina na redução da ansiedade de pacientes de cancêr - Los Angeles Biomedical Research Institute, (5) MDMA no tratamento de stress pós-traumático - Michael Mithoefer, MD; isto sem entrar no detalhe da movimentação pelo uso médico da cannabis.

O quadro positivo observado atualmente no setor da pesquisa científica não pode deixar-nos esquecer do movimento de contra-informação que conferiu enorme publicidade a pesquisas enganosas, equivocadas e/ou mal-intencionadas divulgadas no período. Alguns casos clássicos são a matéria da TIME em 1969 associando o consumo de LSD à leucemia, e o relatório de 1967 do Dr. Maimon Cohen reportando danos genéticos (quebra de cromossomos) em usuários de LSD -- ilustrado com fotos de bebês deformados nas revistas da época. Em tempos mais recentes, ficaram famosas as 'duvidosas' pesquisas sobre a toxicidade do MDMA (e sua relação com a incidência do mal de Parkinson) conduzidas pelo Dr. George Ricaurte (foto), não por acaso, o pesquisador mais financiado pelo governo americano na última década - 16.8 milhões de dólares desde 1989.

Aspectos pitorescos da pesquisa com psicoativos acontecem também na construção das hipóteses. Pesquisadores do NIDA recentemente realizaram uma pesquisa para demonstrar efeitos de longo prazo da cannabis na irrigação sanguínea do cérebro, e para isso selecionaram sujeitos com o costume de fumar 350(!) cigarros por semana... Será realmente possível realizar tal façanha? Se for, o NIDA informa que tal hábito pode lhe fazer mal.

sábado, fevereiro 12, 2005

Para Bush, Santo Daime é ameaça à 'War on Drugs'

Deu no site da BBC que o governo Bush, através do recém empossado Secretário de Justiça Alberto Gonzales (foto), novamente interferiu no vitorioso processo de legalização do uso ritual da ayahuasca promovido pelo Centro Beneficente União do Vegetal nos Estados Unidos (repetindo tentativa frustrada em dezembro último).

A chamada da matéria diz:
'O governo americano considera o chá do Santo Daime "um alucinógeno que altera o funcionamento da mente e ameaça causar danos irreparáveis aos esforços internacionais de combate ao tráfico de narcóticos transnacional”.'
BBC - Brasil.com - "Chá do Santo Daime 'ameaça combate ao narcotráfico', diz governo Bush"
O discurso acima acompanha o recurso apresentado no último dia 10/02 à Suprema Corte pelo Secretário de Justiça, numa nova tentativa do governo Bush em impedir que a UDV retome o calendário de rituais em sua sede americana, conforme decisões favoráveis obtidas em todas as instâncias judiciais por onde o processo transitou.

Destaque para a cara-de-pau do governo Bush em caracterizar uma manifestação legítima (a cultura ayahuasqueira) como interferência numa política concebida em gabinetes (War on Drugs), a qual que nunca se mostrou capaz em atender às demandas para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que espalha efeitos colaterais nocivos em escala global. Interessante também como a mídia em geral costuma se referir ao Santo Daime quando está reportando sobre a União do Vegetal.

A batalha judicial da UDV vem se desenrolando desde 2001, e é capitaneada por seu representante nos EUA, Jeffrey Bronfman, herdeiro da família que controla a Seagrams -- famosa indústria de bebidas. Diz a lenda que o milionário devotou seu quinhão à causa ayahuasqueira, o que não deixa de configurar uma relação pitoresca entre ações e reações históricas relativas a proibicionismos de diferentes épocas.

Enquanto isso, as ondas da rede já apontam as consequências que o processo da udv está
causando em movimentos correlatos. Bush poderia estar certo no que diz respeito aos arranhões que a palavra forte dos ayahuasqueiros pode causar na retórica proibicionista.

sábado, fevereiro 05, 2005

Por uma 'Ecologia Cognitiva'

Foram 30 anos de moratória na pesquisa sobre as possíveis utilizações positivas das substâncias psicoativas, que os anos 60 nos ensinaram a chamar de psicodélicos. Neste período se intensificou a política de "Guerra às Drogas" (War on Drugs), que trouxe todos os efeitos negativos que a propaganda nos acostumou a imputar às substâncias em si -- nunca à própria política. Apesar de ainda vivermos à sombra deste pensamento dominante, que sustenta enorme fluxo de capitais e justifica a lucrativa lógica armamentista, ultimamente podem ser percebidos alguns sinais diferentes no ar.

Os últimos anos da década de 90 assistiram significativas movimentações da sociedade civil contrárias à argumentação oficial, como o movimento de descriminalização e regulamentação do uso médico da 'cannabis', a campanha de esclarecimento sobre os efeitos do MDMA em contexto terapêutico, e ainda os notórios processos de legalização de manifestações culturais baseadas em sacramentos psicoativos (ex. Santo Daime na Europa, União do Vegetal nos EUA). Da parte das agências governamentais, é indicativo o número de autorizações dadas a pesquisadores para projetos de avaliação de usos terapêuticos de substâncias psicoativas, e este conjunto de variáveis analisadas em conjunto nos faz crer que está em curso uma importante mudança de clima na discussão dessa questão nos âmbitos acadêmico, científico, legal, e também frente à percepção do público em geral.

Pois é esta mudança de clima que motiva o lançamento deste veículo -- que ousei intitular 'Ecologia Cognitiva'. O blog 'Ecologia Cognitiva' busca acompanhar a dinâmica do diálogo que irá reformatar as referências culturais em relação à liberdade de cada um em interagir ativamente com o funcionamento de próprio aparelho cognitivo, de acordo com práticas cultural e / ou científicamente respaldadas. Objetiva iluminar um novo espaço, com novos conceitos e referências teóricas, para o debate que irá acompanhar a formulação de políticas públicas como a política nacional sobre drogas.

A supremacia do discurso proibicionista tem impedido o surgimento e validação de alternativas que promovam o uso positivo de substâncias psicoativas, bem como a implementação de soluções efetivas aos problemas criados pelo abuso dessas mesmas substâncias em nossa cultura hoje. Nestes anos de obscurantismo não só toda a pesquisa científica foi suprimida mas também seus proponentes perseguidos e desacreditados, criando um clima de desinformação geral baseado no medo. Manifestações culturais que professam o uso tradicional e socialmente adptado de psicoativos, que têm sido apontados como alternativas de cura para casos de abuso e dependência, passaram por questionamentos contrangedores envolvendo processos, confiscos e aprisionamentos.

A Ecologia Cognitiva afirma o valor social do uso positivo de substâncias psicoativas, e pretende conectar e ativar a ação integrada de indivíduos e grupos que considerem chegado o momento de mudar o foco da argumentação que legitima a lógica proibicionista em nosso país.

Sejam bem vindos.