domingo, abril 23, 2006

Canábis: mais uma condenação política

O mais novo ataque ideológico contra a canábis, desferido pela FDA (Food and Drug Administration), tornou-se matéria principal e rendeu editorial no New York Times esta semana. Tanto a matéria como o editorial destacam o caráter político do pronunciamento da agência governamental, da qual a sociedade espera posições baseadas em resultados de pesquisas científicas.
"O hábito da administração Bush em politizar suas agências científicas esteve novamente presente esta semana quando o FDA, inesperadamente e sem qualquer motivação justificável, pronunciou-se de forma breve e mal-documentada negando o valor terapêutico da maconha. A declaração foi descrita como uma resposta a vários questionamentos oriundos do congresso, mas seu objetivo provável é o ataque direto sobre as pessoas que já fazem o uso médico da planta, e sobre a mobilização popular nos estados para a legalização e regulamentação da prática."
The Politics of Pot - Editorial - New York Times
Porque o NYTimes rotula este anúncio como uma declaração política? Como informa o texto mais adiante, quando o FDA realiza este tipo de pronunciamento geralmente reúne um painel de especialistas que apresentam as últimas pesquisas no tema e então pontuam com a opinião sobre a segurança e efetividade de uso da substância. Mas dessa vez a agência simplesmente publicou uma declaração de uma página afirmando que 'nenhum estudo científico reconhecido' ('no sound scientific studies') apoiou o uso médico da canábis.

O estadão noticiou o caso, assim como o IBGF, e ambos destacam que a manifestação da FDA veio em resposta a uma solicitação / intimação do deputado Mark Souder -- o sado-moralista, velho conhecido deste blog. De fato, desde 2004 este senhor vem pressionando as instâncias burocráticas americanas a proclamarem a nocividade da canábis, articulando um esquema entre a NIDA, o DEA, e a FDA, esta última responsável em regular toda e qualquer substância para uso médico. A manifestação do FDA parece indicar que o figurão realizou o plano traçado, mas o tiro pode ter saido pela culatra.

Para entender melhor a questão vale lembrar a apelação do Prof. Lyle Craker contra a recusa do DEA em conceder-lhe licença para a produção de canábis de qualidade e em larga escala para pesquisas do tipo phase III. Tais estudos, fundamentais para a a aprovação do uso médico de qualquer substância segundo o padrão do FDA, não irão acontecer enquanto o sumprimento diminuto e de baixa qualidade provido pela NIDA continuar como única alternativa legal. Estamos diante de uma armadilha institucional circular construída para bloquear a verdade em relação a esta planta.

A recente declaração do FDA apenas anuncia tautológicamente que não existem estudos que possam garantir a eficiência médica da canábis. Entretanto, como já exploramos antes aqui, não faltam estudos a mencionar a segurança do uso e as possibilidades terapêuticas desta planta. A omissão mais gritante da declaração do FDA é em relação ao estudo de 1999 realizado por experts do Instituto de Medicina (IOM) da U.S. National Academy of Sciences, que constatou que a canábis é "moderadamente apropriada para condições particulares, como náusea e vômitos induzidos por quimioterapia e medicação para Aids".

A perseguição à canabis sempre foi política, e está ligada a questões raciais, de classe, de política industrial (farmacêutica), e de hegemonia regional específicas dos EUA. Os países latino-americanos, assim como o Brasil, ainda seguem a cartilha norte-americana sem maiores questionamentos, mas há sinais de mudanças. Esperamos que estas demonstrações de insensatez por parte dos responsáveis pela repressão mundial às drogas estimulem o debate continental sobre novas e independentes abordagens à regulação do uso social de substâncias psicoativas.