segunda-feira, janeiro 26, 2009

Constitucionalidade da legalização do uso de substâncias psicotrópicas

Assunto de interesse:
Real abrangência das garantias fundamentais à diferença, dignidade, formação da personalidade e igualdade de tratamento; possibilidade estatal de decidir sobre o modo de vida dos cidadãos ou até mesmo sua morte.

Delimitação temática:
Possível relação entre efetivo cumprimento dos direitos fundamentais e a concessão do uso de substâncias psicotrópicas hoje declaradas ilícitas. Em outras palavras, considerações sobre a existência de “um direito a se entorpecer”.

Base teórica:
Processo nº 01113563.3/0-0000-000 do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativo à inconstitucionalidade da criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio; confrontado com o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Questões propostas:
Cabe ao Estado fornecer um acervo ético-legal que delimite as substâncias disponíveis ao consumo individual do cidadão? Até que ponto pode o direito versar sobre a proteção do bem jurídico vida, sem cair na armadilha de impor um padrão estatal pretensamente correto de existência humana? Os princípios de dignidade da pessoa humana e livre desenvolvimento da personalidade implicam na possibilidade de usufruir de substâncias psicotrópicas? Se legalizado o consumo, o Estado pode/deve arcar com o suporte aos toxicômanos, ou seja, seres humanos que eventualmente tornem-se dependentes dessas drogas?

O presente trabalho não visa a responder definitivamente a essas indagações, visto que é apenas o embrião de uma pesquisa mais aprofundada que se faz necessária. Uma vez que a problemática das drogas transcende o universo jurídico e abrange conhecimentos médicos e considerações sociológicas e antropológicas, não se pode pretender que aqui o assunto será satisfatoriamente discutido. No entanto, dentro da esfera da constitucionalidade, busco tratar a questão sob um prisma crítico.

Hipótese:
No dia 31 de março deste ano de 2008, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu o senhor Ronaldo Lopes, preso em flagrante no dia 17 de fevereiro de 2007 com 7,7g de cocaína. Esse TJ considerou que a denúncia anônima perpetrada contra o réu não era suficiente para comprovar crime de tráfico. Além disso, o cidadão foi abordado na rua em que morava e afirmou estar-se dirigindo à sua casa, onde passaria os dias restantes de carnaval e utilizaria a droga. No local não foram encontradas mais substâncias ilícitas, o que descartou a possibilidade de ser um ponto de vendas. Assim, Lopes não mais poderia ser condenado pelo artigo 33 da “Lei de Tóxicos” nº 11.343/2006, que versa sobre a traficância.

No entanto, sua ação ainda poderia ser enquadrada nessa mesma lei, no artigo 28, caput:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: (...).
Após análise da questão, o Tribunal considerou, todavia, que o referido artigo é inconstitucional e apresenta “indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal”, por atentar diretamente contra os princípios da igualdade, liberdade e inviolabilidade da intimidade, fundamentos estes garantidos pelo artigo 5º da Constituição Federal.

Pode-se alegar, em contrapartida a esta decisão, que o bem jurídico afetado, a saúde pública, é prejudicado pela circulação da substância psicotrópica no meio social, mesmo que esta seja destinada ao uso individual. Assim, defende-se que o mal a ser combatido não é o dano causado à saúde do consumidor, mas o risco à integridade social que o tóxico representa. Porém, a classificação de “perigo abstrato” não pode ser amparada por esses argumentos, uma vez que o próprio texto da lei identifica o uso como destinação pessoal, idéia esta antagônica à noção de expansibilidade do risco a terceiros. São ações conceitualmente opostas: o consumo exclusivamente individual de qualquer produto não é compatível com o perigo a interesses jurídicos alheios.

Dessa maneira, não se pode zelar pela saúde pública interferindo na esfera privada dos cidadãos, pois o Estado não deve intervir de maneira repressiva (punição penal) no âmbito das escolhas pessoais. Isso caracterizaria imposição de comportamento na esfera da moralidade, o que não compete à normatividade jurídica. Insistir nesse sentido seria praticamente tão insensato quanto penalizar a tentativa de suicídio ou a autolesão, que igualmente não oferecem possibilidade de dano a terceiros.

Posto isso, conclui-se que criminalizar o porte de drogas constitui não-observância ao direito fundamental à diferença daquele que escolhe não seguir o modelo majoritariamente aceitável de vida. Não convém, portanto, que a sociedade estigmatize e exclua do convívio social o cidadão que não compactua com a crença do que é considerado correto e, mesmo ao fazê-lo, não prejudica a outrem. É dever constitucional demandar da população tolerância aos direitos da minoria, também neste caso.

Todavia, essa proposição, situada num modelo proibicionista como o brasileiro, soa quase utópica. Como poderá o indivíduo exercer livremente o seu direito à diferença sem colaborar com o crime organizado do tráfico? Para que o Brasil coloque em prática os ideais democráticos expressos na Carta Magna, é preciso que abandone a lógica bélica e moralista das atuais políticas contra as drogas e adote uma postura mais racional. Já se sabe que o consumo dessas substâncias não é eliminado pela repressão penal (ilusão do ideal de abstinência societal), portanto é preciso que o Estado assim o admita e encare a situação, assumindo a proposta antiproibicionista. Evitando a hipocrisia do fechar de olhos, poder-se-á criar uma série de práticas voltadas à redução de danos gerados pelo uso de entorpecentes. Não será, certamente, uma medida fácil, porém muito mais eficaz do ponto de vista das políticas públicas e coerente para com os princípios constitucionais.