segunda-feira, agosto 21, 2006

Comentários sobre a nova lei de drogas antes da decisão presidencial (2)

A assinatura da nova Lei de Drogas deve acontecer ainda esta semana, entretanto ainda estamos reunindo impressões de especialistas em relação às propostas contidas no texto. O objetivo da Ecologia Cognitiva é manter aceso o debate e reunir informações que qualifiquem o posicionamento da sociedade civil e, em especial o do movimento anti-proibicionista, frente ao novo enquadramento legal proposto para o tema.

Como assinalado pelos coletivos associados, existem alguns pontos da nova lei que merecem atenção e a nosso ver são caso de veto presidencial. A REDUC já havia levantado a questão do Art. 33, que mantém a perspectiva da lei atual, a qual serve como base à perseguição dos implementadores dos programas de redução de danos.
"Já que se trata de modalidades de auxílio ao uso melhor, seria que o parágrafo estivesse alocado sobre a mesma rubrica daquele e sujeito às mesmas penas com a ressalva das ações de redução de danos. Da maneira como está colocado dará fundamento legal à continuidade das perseguições aos agentes de saúde."
Nova legislação sobre drogas - um olhar crítico - REDUC
Outro aspecto que assinalamos aqui é em relação ao Art. 71, que menciona a implementação dos juizados especiais sobre drogas sem o devido cuidado de distinguir tráfico e uso na disposição que define. Apresentamos abaixo argumentação que reforça o posicionamento da REDUC e aumenta o coro para que o presidente Lula realize um último esforço no sentido de tornar a lei mais coerente com sua proposta geral -- conforme explicitada no capítulo sobre 'Princípios e Objetivos'.


Crítica a dispositivos que integram o
Projeto de Lei do Senado n° 115, de 2002
(n° 7.134, de 2002, na Câmara dos Deputados)

Art. 33.

§1°.......................

§ 2° - “Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga:
Pena – detenção, de (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos dias-multa.”
Sugestão de veto – Justificativa
A lei não deve conter disposições supérfluas, cabendo buscar, portanto, a conveniente concisão. Ora, a conduta desenhada no dispositivo transcrito acima está subsumida na previsão do art. 29 do Código Penal – verbis: “Quem de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas na medida de sua culpabilidade.” Assim, além da apontada superfluidade, o parágrafo comentado, por sua extrema subjetividade, se transformaria em fonte de arbítrio o que, a todo custo, há de ser combatido.
§ 3° - “Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.”
Sugestão de veto – Justificativa
O sentido teleológico da nova lei, que se colhe logo das “Disposições Preliminares” (art. 1°) e “Dos Princípios e dos Objetivos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas” (arts. 4° e 5°) aponta para a salutar e indispensável distinção de tratamento entre o tráfico e o uso indevido de drogas, ressaltando “o reconhecimento da intersetorialidade dos fatores correlacionados com o uso indevido de drogas, com a sua produção não autorizada e o seu tráfico ilícito”; enfatiza mais “a adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas”. Ainda, é princípio adotado pelo diploma legal aprovado pelo Congresso Nacional, “a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido de drogas...e de repressão.”
O veto impõe-se, primeiramente, porque há subsunção da conduta contemplada no § 3°, ora analisado, na previsão do art. 28 do texto legal. Em ambos os casos trata-se, fundamentalmente, de consumo pessoal de drogas, em conjunto ou individualmente, e sem a prática de qualquer operação lucrativa. Há, destarte, evidente contradição do dispositivo sob comento, com os “Princípios” supracitados, visto como insere-se a prática de uso indevido no capítulo dos “Crimes”, incluindo-a, especialmente, como matéria do tráfico, previsto no caput do art. 33.
Art. 71. “Nas comarcas em que haja vara especializada para julgamento de crimes que envolvam drogas , esta acumulará as atribuições de juizado especial criminal sobre drogas, para efeitos desta Lei.”
Sugestão de veto – Justificativa
Também aqui cumpre reiterar os princípios e objetivos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, explicitados no texto encaminhado à sanção presidencial que, ao ressaltar a importância de adoção de tratamento legal perfeitamente distinto para o tráfico e o uso indevido de drogas, afasta a unidade de jurisdição contemplada no art. 71, com prevalência do tratamento penal para as duas condutas.
Seguimos atentos para informar qualquer novidade.

terça-feira, agosto 01, 2006

Comentários sobre a nova lei de drogas antes da decisão presidencial

Existe algo realmente estranho no artigo 28 do projeto da nova lei de drogas, pois como bem apresentado neste post, o uso de substâncias psicoativas ainda está configurado como 'injusto penal', ou seja, crime.
"Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Redação final do Projeto de Lei do Senado nº 115, de 2002 (nº 7.134, de 2002, na Câmara dos Deputados)"
Da forma como apresentado, o artigo 28 explicita certa esquizofrenia pois criminaliza sem exatamente punir. Expressa um evidente mas ainda tímido reconhecimento da falência do modelo repressivo como estratégia eficaz de combate ao uso de substâncias psicoativas na sociedade. O resultado é uma 'nova lei (ainda) anti-drogas', que continua criminalizando (agora disfarçadamente) o usuário.

Os malabarismos legislativos específicos deste projeto de lei parecem retratar a 'acomodação' articulada para atender às diversas forças que compõem o atual cenário político nacional e internacional. São o resultado de uma tramitação de 4 anos passando por Câmara, Senado, SENAD, Casa Civil, Itamaraty, entre outros, e só Deus sabe o que foi necessário acomodar para se alcançar consenso e manter coerência neste texto. Resta saber se tais acomodações e adaptações legislativas são a melhor maneira de gerar princípios e diretrizes destinados a lidar com uma questão social tão complexa. O Prof. Herbert Reis Mesquita, delegado da Polícia Federal e professor de Direito Penal da Faculdade Unieuro, acha que não:
"Nesse contexto, apenar alguém que comete um crime com uma "advertência sobre os efeitos da droga" é pífio, não sendo o "aconselhamento" uma função precípua da polícia e do Judiciário"
O crime compensa? Com a nova lei de drogas o crime pode compensar
Walter Maierovitch, ex-SENAD no governo FHC, também apontou a distorção em rápida análise sobre o projeto de lei que está para ser sancionado pelo presidente Lula:
"O projeto é criminalizante no que toca ao usuário, exatamente o oposto do contido e pregado em carta assinada pelo Lula para o secretario geral do ONU, em 1998. Além disso está na contramão, ou seja, é atrasado: trabalha com a falsa idéia de despenalização e introduz o modelo norte-americano da "Justiça Terapêutica". E também converte em pena de prisão a sanção restritiva a direitos imposta ao condenado por porte de droga para uso próprio. Se o Lula colocar no seu c.vitae a introdução da Justica Terapêutica no Brasil, o Bush e o czar da Casa Branca, Jonh Walters, irão adorar."
Walter Maierovitch - Sobre o projeto de lei
Para reforçar a oportuna lembrança com que nos brinda Maierovitch, registramos aqui que a mencionada carta assinada pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva entre outras coisas diz:
"Acreditamos que a guerra global contra as drogas está causando agora mais danos do que o uso indevido de drogas em si... Persistir em nossas atuais políticas apenas resultará em mais uso indevido de drogas, maior fortalecimento do mercado ilícito, aumento da criminalidade e mais doença e sofrimento."
Psicotrópicus - Carta Pública a Kofi Annan
O uso / consumo de substâncias psicoativas é uma decisão de foro pessoal, não agride bem jurídico penal, e portanto não faz sentido ser enquadrado como crime em qualquer hipótese. Por sua vez, o abuso de substâncias psicoativas é uma questão de saúde pública, que deve ser abordada pela ótica da redução de danos. Neste aspecto, segundo os colegas do Princípio Ativo, temos progresso com a nova lei:
"A lei traz alguns grandes avanços. Ao definir que as políticas de atenção em saúde voltadas às pessoas que usam drogas devem estar pautadas nos princípios e diretrizes do SUS, a lei aponta saúde como direito... a Redução de Danos aparece devidamente caracterizada como forma de atenção em saúde. Neste sentido, passamos a ter um dispositivo poderoso de enfrentamento da Justiça Terapêutica, pois mesmo que ainda seja permitido ao juiz determinar um tratamento (o que é um contra-senso se pensamos nos princípio dos SUS), ao menos podemos exigir que a definição sobre qual a abordagem terapêutica seja construída pelo sujeito, conjuntamente com um profissional de saúde do SUS."
Reflexões do Princípio Ativo sobre as implicações da nova lei (ainda) antidrogas
Há indícios de que Lula deve assinar a lei até o próximo dia 04/08, e não temos ilusões sobre a possibilidade de mudanças significativas no que está proposto. Entretanto, consideramos que a aprovação desta lei abre uma nova etapa para o anti-proibicionismo no Brasil, onde vislumbro um debate mais arejado e menos preconceituoso sobre o uso social de substâncias psicoativas. Os colegas do sul foram felizes na síntese:
Mesmo reconhecendo que o substitutivo da lei 6.368/76 está apontando para o reconhecimento de um fracasso da lógicas meramente repressivas (seja na área da saúde ou da segurança), nossa única vitória está em poder usar esta lei, a partir de sua sanção, não somente como um dispositivo de reflexão sobre a proibição das drogas em nossa sociedade, mas também como um instrumento de luta pelos direitos dos usuários e dos pequenos vendedores das drogas tornadas ilícitas.
Reflexões do Princípio Ativo sobre as implicações da nova lei (ainda) antidrogas
Nós aqui seguimos acompanhando o tema, informando e debatendo, e também torcendo por uma boa decisão presidencial. O que seria mais oportuno neste momento? Sancionar a lei e propor discussão, ou vetar partes do texto? Como resolver a esquizofrenia da proposta? O que vetar? Certamente precisamos alargar o debate, e o momento oportuno pode ser agora mesmo.

quinta-feira, julho 20, 2006

Avaliando a Lei de Drogas que Lula deve assinar

No úlimo dia 12 de julho o Senado votou e aprovou a nova Lei de Drogas que agora será encaminhada para sanção presidencial [confira o áudio da seção]. Após trinta anos temos a possilidade de renovar a legislação brasileira sobre drogas, e a grande novidade é a diferenciação entre usuário e traficante, que não era prevista na Lei 6.368/76.

A íntegra da proposta da nova lei está disponível aqui, e estamos ativando a rede para um movimento colaborativo de avaliação do que está proposto no texto, de forma a consolidarmos uma posição do movimento anti-proibicionista nacional.

Acreditamos que é importante avaliar a nova lei de drogas sob os vários aspectos em que a lógica proibicionista da legislação vigente vem interferindo no que seria o fluxo natural da cultura e da sociedade na questão do uso de substâncias psicoativas. Assinalamos abaixo alguns pontos que consideramos fundamentais que estejam contemplados e/ou referenciados na proposta de lei que irá a sanção presidencial:
  • descriminalização de usuários
  • políticas de redução de danos sobre o uso
  • caracterização do uso médico
  • caracterização do uso religioso
  • promoção da pesquisa médica e antropológica sobre o uso
Em relação à descriminalização de usuários, obtivemos uma significativa vitória no decorrer da tramitação da proposta com a retirada das emendas que haviam sido introduzidas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, as quais restituía pena de prisão para usuários e tornava a enquadrar usuários plantadores como traficantes. O movimento de esclarecimento ativado na rede parece ter sensibilizado os senadores quanto à existência de realidades pouco conhecidas pelos parlamentares em Brasília, da mesma forma que chamou a atenção de toda uma tribo sobre a relevância do debate político [veja comentários do último post].

Sintetizando, de acordo com nossa análise a proposta que está para ser assinada pelo presidente contém avanços reais e significativos em relação à legislação vigente. Entretanto, é importante que os coletivos se manifestem com base em avaliações cuidadosas sobre o que está proposto, de acordo com suas áreas de atuação. A ecognitiva se dispõe a veicular e dar visibilidade a todas estas movimentações e conversas.

Aguardo sinais, lembrando que não há muito tempo disponível...

quarta-feira, junho 14, 2006

Desvelando o debate dos senadores sobre a nova política de drogas

Como anunciado anteriormente, a Ecologia Cognitiva está apresentando trechos do vídeo da sessão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado no dia 31/05/2006, quando foi apreciado o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 115, de 2002, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD.

Os resultados e consequências da sessão da CCJ para a formulação da nova política de drogas no país foram abordados e detalhados no post anterior. Nosso objetivo com a divulgação destas imagens é abrir um debate público e abrangente sobre o tema, chamando atenção para alguns aspectos que consideramos importantes:

1) O vídeo demonstra a clara e louvável intenção da maioria dos senadores em aprovar uma nova política de drogas, frente à incapacidade da lei vigente em lidar com as situações reais do consumo e do tráfico de substâncias ilícitas hoje no país.



2) Alguns trechos demonstram a absurda falta de informação dos senadores em relação a questões práticas do tema, principalmente nos argumentos que justificam a emenda que exclui a proposta da Câmara de pena alternativa para quem semeia, cultiva e colhe plantas destinadas à preparação de drogas.



3) A argumentação do Sen. Jefferson Peres indica a impropriedade de se tratar do problema do abuso de drogas na sociedade com a repressão e o proibicionismo, e apresenta uma abordagem moderna e arrojada que deveria ser apoiada e respaldada pelo movimento anti-proibicionista -- de forma que o Senador não mais abrisse suas exposições no tema entitulando-se um 'ET', por supostamente estar apresentando posicionamento isolado e 'exótico' na questão.



4) O fechamento da discussão deste tema na sessão da CCJ apresentou encaminhamento altamente questionável, após o momento em que o Sen. Jefferson Peres assinalou a infração regimental em que incorriam os senadores ao acatar emendas ao projeto nesta fase da tramitação.



Convoco todos os interessados no tema a se manifestarem nos comentários, deixando opiniões de resposta aos argumentos dos senadores, sugestões de ações concretas a serem empreendidas, e tudo o mais o que possa ser considerado útil neste momento importante de mobilização. Solicita-se especialmente a colaboração de profissionais do direito e especialistas em assuntos parlamentares para que possamos traçar os próximos passos da mobilização com o suficiente conhecimento de causa.

Nunca é demais lembrar que esta movimentação é política, e envolve a mobilização dos cidadãos que militam pelo anti-proibicionismo para que se façam representar adequadamente no congresso nacional, buscando os canais legítimos de manifestação e influência nas decisões que irão formatar o futuro do país.

UPDATE (16/06/2006): está disponível aqui a íntegra do registro da sessão da CCJ do Senado que avaliou a 'nova' política de drogas para o país.

quinta-feira, junho 01, 2006

Senado reintroduz prisão para usuário na 'nova' política de drogas

A matéria de "O Globo" apresenta bem a situação em que foi encaminhada a aprovação da 'nova' política de drogas brasileira:
"A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou ontem a reintrodução da pena de prisão para usuário de drogas no projeto que aprimora a Lei Antidrogas, de 2002. A pena, que vai variar de seis meses a dois anos de cadeia, será aplicada ao usuário que não cumprir as penas alternativas: prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programas ou cursos. A versão original do projeto não incluía a prisão dos usuários como punição. Já está prevista também multa para quem não cumprir algumas dessas medidas... A comissão aprovou ainda a exclusão da proposta da Câmara de pena alternativa para quem semeia, cultiva e colhe plantas destinadas à preparação de drogas. Quem for flagrado, por exemplo, com um pé de maconha plantado num vaso será tratado como traficante e preso. As alterações são de autoria dos senadores Demóstenes Torres (PFL-GO) e Magno Malta (PL-ES), conhecidos por posições rigorosas no tema."
CCJ do Senado aprova prisão para usuário de drogas - O Globo
Um projeto leva 4 anos tramitando no congresso, e em apenas uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça é completamente desfigurado pela atuação de 2 senadores obviamente mal preparados para lidar com a questão? Isto não pode ser legal... e temos informações de que realmente houve violação do regimento na introdução das alterações de mérito no projeto de lei. A Ecologia Cognitiva manifestou-se diretamente aos senhores senadores:

Prezado Senador,

Tivemos a informação de que aconteceu hoje na CCJ um acordo prevendo que o usuário de drogas que não se submeta às medidas educativas estará sujeito, sucessivamente, a restrição de direitos; se isso não resolver, a multa; e, somente em último caso, à pena de detenção. Isso é um avanço. Mas fico com a opinião do representante do Ministério da Saúde que a classifica de "avanço tímido". Sem dúvida, muito melhor seria prevalecer a redação original que foi proposta, sem qualquer previsão de pena privativa de liberdade.

Porém o que realmente causa espanto mesmo é a pena para "semear, cultivar ou colher". Afinal, aquele que for condenado por posse para uso próprio somente sofrerá privação de liberdade como última alternativa. Já quem "semear, cultivar ou colher" continuará sendo, em princípio, condenado por tráfico, recebendo, portanto, pena pesada. No texto anterior do projeto, essa conduta havia sido expressamente equiparada à posse para uso próprio, ficando, portanto, também sujeita às penas alternativas.

Como o senador deve saber, principalmente em relação à canabis, o uso social positivo só pode acontecer através do cultivo pessoal da planta, que elimina a relação com o tráfico e pode demonstrar a possibilidade da integração social do uso culturalmente regulado. Eliminar esta possibilidade é perseguição política, como de costume, e vai na contramão de outras iniciativas continentais de recuperação e valorização do uso tradicional / medicinal / espiritual de plantas psicoativas.

Portanto, podemos dizer que a 'nova política de drogas' brasileira transformou-se num fiasco. Esperamos tanto tempo para isso? Para sermos traídos pelos senadores da república? Absolutamente não -- algo precisa ser feito. Acredito que seja papel do senador nos ajudar neste momento.

Aqui, uma informação importante que nos foi passada por especialistas nas regras regimentais do senado:

Qualquer alteração de mérito que venha a ser agora introduzida no projeto de lei pelo senado, inclusive essas que foram realizadas na CCJ, é anti-regimental. Isso porque o projeto foi apreciado originalmente pelo senado; depois pela câmara. Agora, ao retornar ao senado, cabe a este, simplesmente, aprovar, rejeitar ou fazer emendas de redação; não emendas de mérito, porque o projeto já foi apreciado pelo senado. Tivemos informações de que os consultores alertaram os senadores para isso, mas não adiantou. Eles atropelaram o regimento para mudar o que queriam.

Isso nos lembra de
outras situações recentes em que projetos de reforma das políticas públicas para substâncias psicoativas foram bloqueados por instâncias alheias aos processos legítimos e representativos, e à revelia da avaliação de autoridades e especialistas.

É importante neste momento que o senador seja vocal em relação à essa violação do regimento pelos senadores, e que auxilie a sociedade civil mobilizada a fazer valer a legalidade nos trâmites da função representativa do congresso nacional.

Aguardo retorno.

Chamo a atenção dos interessados para o fato de que esta movimentação é política -- precisamos de consciência e firmeza para fazer valer nossos direitos de cidadão, e validar a cultura do uso positivo das substâncias psicoativas frente à sociedade.

segunda-feira, maio 15, 2006

Proibicionismo e relações internacionais nas Américas

Mais uma vez a doutrina anti-drogas dos EUA interfere em processos democráticos e decisões soberanas no âmbito da regulação do uso de substâncias psicoativas em seus vizinhos nas américas. Desta vez foi no México, onde o Presidente Vicente Fox teve que passar pelo papel ridículo de se curvar à prepotência de Bush e vetar uma lei promulgada pelo Senado, a qual estabelecia uma reforma na abordagem penal aos usuários de substâncias psicoativas -- projeto que ele mesmo(!) havia enviado para aprovação no congresso:
"El Senado aprobó, la madrugada de ayer, reformas a la Ley General de Salud y a los códigos Penal Federal y de Procedimientos Penales que permiten la portación de cantidades mínimas de drogas, sólo para consumo personal. Las reformas, con 53 votos a favor, 26 en contra y una abstención, limitan la competencia de las autoridades locales a los delitos de comercio, suministro y posesión de narcóticos en pequeñas cantidades con base en un listado elaborado por la Secretaría de Salud. Una vez que las modificaciones se publiquen en el Diario Oficial de la Federación, cualquier persona podrá portar una dosis autorizada de droga, siempre y cuando tenga la necesidad o la prescripción médica, ya sea porque es drogadicto o requiere del narcótico por cuestiones de salud. Aquella persona que se sorprendida con mayor cantidad a la autorizada será investigado y procesado por posesión de narcóticos."
Los adictos podrán portar ciertas dosis de droga - trikinhuelas.com - 30/04/2006
Apesar de ter percorrido todo o trâmite legal e apresentar-se como uma legítima decisão soberana de um país que sofre especialmente com os efeitos de uma guerra sem fim ('war on drugs'), a reforma durou apenas 3 dias. Pode-se imaginar a pressão sofrida pelo pobre Vicente frente às àguias de Washington, e a 'emenda ficou pior que o soneto'.
"Había sido presentada por el presidente Vicente Fox ante la Comisión Permanente, el 30 de diciembre de 2003. Pasó por el Senado, por la Cámara de Diputados, regresó a Xicoténcatl, se aprobó y después el Ejecutivo al final decidió vetarla. Eso fue lo que ocurrió con la iniciativa de reformas a la Ley General de Salud, al Código Penal Federal y al Código Federal de Procedimientos Penales."
Fox vetó ley sobre drogas que impulsó - El-Universal.com.mx - 05/05/2006
Fica aí mais uma lição para o movimento anti-proibicionista. É inútil tentar mudar leis à nível nacional sem uma articulação mais ampla no âmbito internacional. Como já declarou publicamente o Ministro da Cultura Gilberto Gil em recente entrevista:
Quando o senhor fala de liberação, fala de todas as drogas?
Falo gradualmente. Pode partir das drogas menos complicadas às mais complicadas. Uma graduação no processo de liberação e uma compactuação internacional. Unilateralmente alguns podem, como os países europeus Holanda, Portugal e Suíça, que praticam mais essa liberação gradual de drogas. Mas nos países da América do Sul, onde a produção é grande, o tráfico, a base de fornecimento das drogas, é onde essas bases estão: no caso do Oriente, a heroína; na América do Sul, a cocaína; e África e partes da América do Sul, o caso da maconha. Para essas áreas, era preciso que houvesse pactuação internacional. Unilateralmente é muito difícil. Brasil libera as drogas, e aí?! E os outros ao redor não liberam? Aí fica complicado.
Legalização Das Drogas: O Que Diz O Ministro Da Cultura - Terra Notícias
O ministro sabe do que está falando, e a América Latina reúne todas as condições para se articular pró-ativamente contra este inferno imposto pela mentalidade distorcida do império norte-americano. Temos aqui no continente o posicionamento corajoso de Evo Morales em afirmar a cultura e o uso social positivo da folha da coca, e também a experiência exitosa da mediação estatal da regulação do uso ritual da ayahuasca no Brasil. As contradições da argumentação que fundamenta a política da 'guerra às drogas' começam a ficar evidentes, e até a suprema corte americana já não pode resistir à força dos fluxos criativos da cultura que clamam pela oportunidade de atacar o problema do abuso de susbstâncias psicoativas por outras vias que não o proibicionismo autista.
"George W. Bush pode se gabar de ser o homem mais poderoso do globo, um “guerreiro” invencível, mas perdeu, e feio, a “batalha dos vegetais”. Por decisão unânime, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em fevereiro, que o presidente não pode impedir a filial ianque da União do Vegetal (UDV) de usar, em seus rituais religiosos, o chá de ayahuasca (ou huasca ou santo daime), visto pelo presidente norte-americano como “um alucinógeno que altera o funcionamento da mente e causa danos irreparáveis nos esforços de combate ao tráfico de narcóticos transnacional”. No mês passado, os cultos ayahuasqueiros conseguiram outra vitória: durante o Seminário Ayahuasca, promovido pelo Conselho Nacional Antidrogas, o Conad, foi apresentado um relatório recente da ONU que exclui o DMT, princípio ativo do chá, da lista de psicoativos proibidos pelo Tratado Internacional de Drogas, de 1971. Mais: em 2007, o Brasil está convidado para apresentar na sede da organização, em Nova York, a sua forma de trabalhar com a ayahuasca."
A batalha dos vegetais - Carlos Haag - Revista Fapesp - Maio/2006
Cabe a nós, interessados na mudança desta situação, uma reflexão sobre o que tem sido feito até agora, e como podemos aperfeiçoar a ação de esclarecimento da sociedade frente à este festival de ignorância patrocinado por Mr. Bush e cia. Não há como esperar pelo bom senso destes senhores da guerra, como já pudemos comprovar. Nosso objetivo tem de ser a articulação continental dos movimentos anti-proibicionistas.

Falei. Alguém tem algo a acrescentar?

domingo, abril 23, 2006

Canábis: mais uma condenação política

O mais novo ataque ideológico contra a canábis, desferido pela FDA (Food and Drug Administration), tornou-se matéria principal e rendeu editorial no New York Times esta semana. Tanto a matéria como o editorial destacam o caráter político do pronunciamento da agência governamental, da qual a sociedade espera posições baseadas em resultados de pesquisas científicas.
"O hábito da administração Bush em politizar suas agências científicas esteve novamente presente esta semana quando o FDA, inesperadamente e sem qualquer motivação justificável, pronunciou-se de forma breve e mal-documentada negando o valor terapêutico da maconha. A declaração foi descrita como uma resposta a vários questionamentos oriundos do congresso, mas seu objetivo provável é o ataque direto sobre as pessoas que já fazem o uso médico da planta, e sobre a mobilização popular nos estados para a legalização e regulamentação da prática."
The Politics of Pot - Editorial - New York Times
Porque o NYTimes rotula este anúncio como uma declaração política? Como informa o texto mais adiante, quando o FDA realiza este tipo de pronunciamento geralmente reúne um painel de especialistas que apresentam as últimas pesquisas no tema e então pontuam com a opinião sobre a segurança e efetividade de uso da substância. Mas dessa vez a agência simplesmente publicou uma declaração de uma página afirmando que 'nenhum estudo científico reconhecido' ('no sound scientific studies') apoiou o uso médico da canábis.

O estadão noticiou o caso, assim como o IBGF, e ambos destacam que a manifestação da FDA veio em resposta a uma solicitação / intimação do deputado Mark Souder -- o sado-moralista, velho conhecido deste blog. De fato, desde 2004 este senhor vem pressionando as instâncias burocráticas americanas a proclamarem a nocividade da canábis, articulando um esquema entre a NIDA, o DEA, e a FDA, esta última responsável em regular toda e qualquer substância para uso médico. A manifestação do FDA parece indicar que o figurão realizou o plano traçado, mas o tiro pode ter saido pela culatra.

Para entender melhor a questão vale lembrar a apelação do Prof. Lyle Craker contra a recusa do DEA em conceder-lhe licença para a produção de canábis de qualidade e em larga escala para pesquisas do tipo phase III. Tais estudos, fundamentais para a a aprovação do uso médico de qualquer substância segundo o padrão do FDA, não irão acontecer enquanto o sumprimento diminuto e de baixa qualidade provido pela NIDA continuar como única alternativa legal. Estamos diante de uma armadilha institucional circular construída para bloquear a verdade em relação a esta planta.

A recente declaração do FDA apenas anuncia tautológicamente que não existem estudos que possam garantir a eficiência médica da canábis. Entretanto, como já exploramos antes aqui, não faltam estudos a mencionar a segurança do uso e as possibilidades terapêuticas desta planta. A omissão mais gritante da declaração do FDA é em relação ao estudo de 1999 realizado por experts do Instituto de Medicina (IOM) da U.S. National Academy of Sciences, que constatou que a canábis é "moderadamente apropriada para condições particulares, como náusea e vômitos induzidos por quimioterapia e medicação para Aids".

A perseguição à canabis sempre foi política, e está ligada a questões raciais, de classe, de política industrial (farmacêutica), e de hegemonia regional específicas dos EUA. Os países latino-americanos, assim como o Brasil, ainda seguem a cartilha norte-americana sem maiores questionamentos, mas há sinais de mudanças. Esperamos que estas demonstrações de insensatez por parte dos responsáveis pela repressão mundial às drogas estimulem o debate continental sobre novas e independentes abordagens à regulação do uso social de substâncias psicoativas.

terça-feira, abril 18, 2006

Maierovitch no Roda Viva

Walter Maierovitch (foto, entre arbustos de coca), ex-Secretário Nacional Anti-Drogas durante o governo FHC (1999-2000) e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, foi o entrevistado do programa Roda Viva ontem (17/04). Interessante tomar contato com as informações sobre a 'Operação Mãos Limpas' na Itália, e o papel diferencial do ministério público na configuração jurídica italiana. Mas o ponto alto da entrevista foram os relatos sobre sua passagem na Senad, e as conclusões que a experiência deixaram no professor de direito, juiz e especialista em criminalidade.

Lembrou, por exemplo, de um episódio ocorrido em Tabatinga, quando no meio da mata amazônica foi apresentado a 6 agentes americanos do DEA que estavam em 'escuta ambiental', e mal sabiam pronunciar uma palavra de português. O 'causo' serviu para ilustrar a situação resultante da política inaugurada por Nixon e impulsionada por Reagan, de 'combater as drogas onde elas estiverem' -- o que serve como ótima justificativa para intervenções transnacionais de todo tipo.

Quando perguntado sobre a viabilidade do combate às drogas, lembrou que os primeiros registros sobre uso de substâncias alteradoras da consciência datam do século 5 antes de cristo, e que desde então não há nenhum sinal concreto de que a cultura humana possa viver sem o uso social das substâncias psicoativas. A repressão / prevenção ao uso, princípio da política que os EUA forçam o resto do mundo a adotar, resultou em um mercado paralelo que movimenta 300 bilhões de dólares por ano, onde os aparelhos policiais são presas fáceis de um irresistível poder corruptor e só apreendem de 5 a 10% do que é ofertado.
"A política brasileira antidrogas, concebida ao apagar das luzes do governo FHC e mantida por Lula, copiou o modelo norte-americano, que, dentre outros equívocos, trata a demanda como questão criminal e não de saúde pública."
Walter Maierovitch - Falcão, os meninos do tráfico, in Carta Capital
Após deixar a Senad em 2000, Maierovitch chegou a lamentar publicamente a posição brasileira, que divergia de outros países latino-americanos como Peru e Equador e se alinhava aos EUA: "O professor Fernando Henrique vai deixar o Governo defendendo a criminalização da maconha, o que vai na contramão da história". ( Jornal do Brasil - 20/04/2002). No programa, avaliou que FHC se equivocou ao apressar Aécio Neves, então presidente da câmara dos deputados, a aprovar a nova lei anti-drogas nas últimas semanas de seu governo. O resultado foi uma colcha de retalhos, que FHC teve que vetar na última hora (derrubou 35 artigos de um total de 59). O que fica patente é que o descaso político em relação ao tema está cobrando caro da sociedade brasileira.

Recentemente (03/03), Maierovitch fez uma aparição retumbante na blogosfera postando pelo blog do Fernando Rodrigues ('Lula abre porta para política de drogas que antes combatia'), lembrando-nos das sinalizações que Lula emitia em relação ao tema das drogas quando ainda em campanha. Em 1998, por ocasião da Assembléia Especial das Nações sobre Drogas em Nova York, foi signatário do protesto encaminhado ao secretário geral Kofi Annan contra as políticas proibicionistas da ONU.
Diz a carta: "Acreditamos que a guerra global contra as drogas está causando agora mais danos do que o uso indevido de drogas em si. " E mais adiante: "Persistir em nossas atuais políticas apenas resultará em mais uso indevido de drogas, maior fortalecimento do mercado ilícito, aumento da criminalidade e mais doença e sofrimento."Apesar de ter assinado esta carta, nosso presidente parece ter se esquecido de suas idéias políticas sobre as drogas, mantendo a política antidrogas intolerante, fascista, opressora e repressiva, levianamente militarizada durante o governo FHC, com as bênçãos (ou quem sabe imposição) da Casa Branca.'
Luiz Paulo Guanabara - Psicotrópicus - Carta Pública a Kofi Annan
Seguimos assistindo a passagem de presidentes e autoridades do tema 'drogas' que se manifestam contrários à orientação da política estabelecida, e que no entanto não são capazes de efetivar mudanças concretas no cenário e no marco regulatório que ordena a questão. Não estaria na hora de atuarmos de forma séria e autônoma, livre das cartilhas gringas que jamais deram qualquer resultado positivo? Não reside aí a solução para 'os meninos do tráfico'? Fala Maierovitch, ex-secretário da Senad.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Uso ritual da ayahuasca é reconhecido pela Suprema Corte nos EUA

Em decisão unânime (8-0), a Suprema Corte dos Estados Unidos deciciu que o governo Bush não pode impedir a filial da União do Vegetal no estado do Novo México de utilizar o chá Ayahuasca (Hoasca / Santo Daime) em seus rituais religiosos. O veredicto atesta que o grupo religioso está protegido pelo 'Religious Freedom Restoration Act', aprovado pelo congresso em 1993, e que foi peça jurídica fundamental no processo que legalizou o uso ritual do cactus peiote (princípio ativo: mescalina) pela 'Native American Church' - congregação que reúne descendentes de algumas etnias indígenas norte-americanas.

O caso colocou o governo Bush, que declara o chá perigoso e ilegal, em desconfortável oposição a vários grupos religiosos importantes. Dentre as organizações que oficialmente apoiaram a UDV do Novo México no processo estão a seção norte-americana da Conferência dos Bispos Católicos e a Associação Nacional dos Evangélicos entre outros. Os advogados do Departamento de Justiça tentaram demonstrar que haviam interesses de ordem superior para a aplicação uniforme do 'Controlled Substances Act' no caso, o que determinaria a ilegalidade do sacramento em virtude da presença do DMT como um dos princípios ativos encontrados no chá amazônico.

Os juízes entretanto consideraram que a exceção concedida ao uso ritual do peiote, que está em vigor desde que o 'Controlled Substances Act' foi publicado, não teve como consequência o abuso ou o uso descontrolado e não ritualístico do sacramento nativo. A argumentação de que a exceção à ayahuasca estaria em desacordo com a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas da ONU (de 1971) também não foi considerada válida. Os juízes avaliaram que o governo não conseguiu demonstrar de forma consistente as consequências internacionais que a exceção concedida à UDV poderiam causar.

Vale ressaltar que a vitória jurídica da UDV nos EUA tornou-se possível graças ao apoio incondicional da fortuna e influência de um dos herdeiros da família Bronfman - Jeffrey Bronfman - em todo o processo. O curioso é que a fortuna da família tem sua origem no engarrafamento de bebidas alcoólicas em Montreal, Canadá, na época da Lei Seca nos EUA, e Bronfman, em yidish, significa 'whiskey man' (o homem do whiskey). Recentemente a família vendeu a Seagram's por 8 bilhões de dólares para a multinacional francesa Vivendi, transferindo seus negócios para o ramo do entretenimento e da mídia em escala global, adquirindo a MCA, a Universal Pictures, Universal Music e PolyGram, e mais recentemente, a Warner Music (detalhes no artigo 'Não confunda whiskeyro com oaskeiro').

Em síntese, o proibicionismo de hoje é combatido com os recursos acumulados em função das distorções do proibicionismo do passado. Quais as lições que podemos tirar desta situação? Para acompanhar tudo o que aconteceu no decorrer deste processo, visite os outros links sobre o tema neste blog:

segunda-feira, janeiro 23, 2006

A maioridade do movimento psicodélico



O simpósio internacional realizado na Basiléia - Suiça, organizado com o principal objetivo de celebrar o 100º aniversário do Prof. Albert Hofmann, criador do LSD, marcou de forma expressiva o retorno da pesquisa com psicoativos como alternativa viável para a futuro da saúde mental. O evento reuniu grande parte dos pesquisadores, experimentadores e psiconautas que de maneira estrategicamente discreta mantém resistência à inquisição promovida pela política proibicionista de 'guerra às drogas', e teve na conferência do velho alquimista seu ponto alto:
"Na tarde de 16 de abril de 1943, ao preparar derivados de ácido lisérgico tive que me ausentar do laboratório subitamente. Senti que algo diferente estava acontecendo comigo. Tudo o que eu imaginava vinha a minha mente como imagens. Foi uma viagem de horror, e me senti como se o fim estivesse próximo. Pensei que era realmente o fim. Mas na manhã seguinte me senti revigorado, como se uma nova vida entrasse em meu corpo - uma sensação maravilhosa. Impossível descrever quão mágica foi esta experiência."
Albert Hofmann - Conferência no Simpósio da Suíça - 13/01/2006
Por pouco mais de uma década, do final dos anos 40 até o início dos anos 60, o LSD foi a vanguarda em vários setores da cultura. Al Hubbard, um médico (apelido: "Captain Trips") que mantinha ligações secretas com a CIA, introduziu mais de 6.000 pessoas na utilização terapêutica da substância antes de sua proibição definitiva em 1966. Compartilhou o sacramento com um monsenhor da igreja católica nos EUA, com o fundador da Alcoólicos Anônimos - AA, Bill Wilson, e com Aldous Huxley (em sessão que resultou no conhecido 'Portas da Percepção'). Foi através de Hubbard que muitos analistas e psiquiatras de Beverly Hills 'aplicaram' astros como Cary Grant, James Coburn, Jack Nicholson, a novelista Anais Nin, e o cinegrafista Stanley Kubrick, entre centenas de outros. Foi por aqui que o vetor cultural do LSD decolou, tornando-se assunto em Hollywood e consequentemente disseminando o uso recreativo nas ruas.

Paralelamente, houve a pesquisa militar secreta. Como descrito por Martin A. Lee em "Acid Dreams: The Complete Social History of LSD", foram mais de 10 anos (1953 a 1966) de testes legais e ilegais com o LSD, a procura de uma ferramenta para 'lavagem cerebral', ou algo parecido com o 'soro da verdade'. Os experimentos foram encerrados pelo fracasso da experiência em 'lavar' qualquer coisa, e também pelo fato das doses aumentarem a tenacidade psíquica dos sujeitos em não cooperar com seus entrevistadores. Mas apesar de 35 anos de 'war on drugs' a substância ainda ocupa as manchetes, como no famoso caso da prisão de William Leonard Pickard, onde foram apreendidas aproximadamente 10 milhões de doses de LSD.

Do outro lado desta guerra está Rick Doblin (fundador e presidente do MAPS), que com sua presença afável apresentou no evento sua luta pela reforma da política de drogas e pelo retorno das substâncias psicoativas nas lista das terapêuticas aprovadas pelo FDA. Dessa forma tem facilitado governos e pesquisadores a realizar pesquisa médica com psicoativos em humanos, o que já resulta em estudos em andamento com MDMA (Extase), psilocibina e LSD, cannabis, e a iboga no tratamento da dor crônica e das adições.

Podemos considerar que fazem 50 anos desde o encontro de Gordon Wasson com a xamã Maria Sabina no México, que resultou no artigo "Seeking the Magic Mushroom" publicado na Time em 13 de maio de 1957. E Albert Hofmann viveu este período vendo sua 'criança problema', inicialmente vista como uma respeitável química utilizada por terapêutas em todo o mundo, transformar-se em droga sagrada para uma geração revolucionária, e depois, em mais uma substância num mundo hiper-medicado. No final dos anos 80 e nos anos 90 uma nova geração de 'festeiros', na onda da cultura 'clubber' que popularizou a variante química do Extase, relançou o LSD em meio a um menu variado de substâncias incluindo 2CB, cogumelos, anfetaminas, cocaina, heroina e outras variantes que fazem sucesso nos mercados hedonistas mundiais.

Mas os efeitos do LSD sempre mostraram marcas mais profundas que os modismos superficiais. São famosos os relatos de personagens chave da era da informação que impulsionaram a revolução do computador pessoal usando a substância como fomento à criatividade, como relatado pela revista Wired diretamente do Simpósio:
"O encontro incluiu uma discussão de quão cedo os pioneiros da computação utilizaram o LSD como ferramenta de inspiração. Douglas Englebart, o inventor do mouse, Myron Stolaroff, engenheiro da Ampex, e o fundador da Apple Steve Jobs estão na lista. O repórter do New York Times John Markoff, em seu livro 'What the dormouse said', cita Jobs descrevendo sua experiência com a substância como 'uma das 2 ou 3 coisas mais importantes que realizou na vida. Uma das conferências do evento descreve bem a idéia: 'From Open Mind to Open Source'"
Wired Magazine - LSD: The Geek's Wonder Drug?
Entre tantas convergências culturais, a mensagem do Dr. Hofmann parece clara e lúcida:
"O LSD não causa dependência, e não é tóxico. O perigo do LSD é esta profunda transformação na consciência resultante: pode ser fantástica, pode ser aterrorizante. Conseguimos integrar o alcool e o tabaco em nossa cultura, mas não integramos o uso de psicodélicos. O próximo passo seria colocar estas substâncias nas mãos de psiquiatras. Cinquenta anos de experiência não são nada para uma substância que demonstra tão novas e extraordinárias propriedades. Deveria ser possível o estudo apropriado desta substância."
Alberto Hofmann - Interview to the British Independent (1993)
E no fechamento do evento, Dr. Hofmann, 100 anos de vida, com lágrimas nos olhos, faz um apelo aos presentes:
"Somos seres da luz. Isto não é uma expressão mística, é também um fato científico. E a energia do pensamento é alimentada por energia da consciência, a mais alta forma de transformação. Tenho orgulho do meu destino. Agradeço ao bom Deus, e agradeço a todos vocês, crianças que puderam contemplar o caminho. Vocês, que ajudaram a tornar minha criança problema em criança prodígio. Ajudem a minha criança neste mundo. Vocês, que a conhecem, assim devem proceder"
Albert Hofmann - Encerramento do Simpósio.
Entre as muitas referências neste post, grande parte foi retirada do excelente relato de Rak Razam, a quem deixo a última palavra:
"O Movimento Psicodélico é como um iceberg com nove décimos de sua massa abaixo da superfície. Na medida em que resolve mostrar-se, saindo do underground, causa ondas que balançam toda a cultura estabelecida".
Rak Razam - Rebirth: The Psychedelic Movement Comes of Age
Viva Albert Hofmann, Viva o LSD, e vida longa às cabeças que conectam tudo isso!!